Crônica: O Dia dos Salgados Rebeldes
Carreguei minha caixa térmica, que pesava mais que minha consciência depois de comer três coxinhas de teste, e saí pelas ruas do centro. O plano era simples: gritar “Olha a coxinha quentinha, freguesia!” e ver o dinheiro entrar. Mas o mundo, meus amigos, tinha outros planos.
Primeiro cliente do dia: dona Márcia, a secretária do cartório, que sempre compra uma esfiha de carne. Ela olhou pra mim com aquele olhar de quem está traindo um juramento sagrado e disse: “Zé, tô de low carb. Só salada hoje.” Low carb? Dona Márcia, a mulher que uma vez comeu quatro pastéis de queijo sem respirar, agora é adepta do alface? Tentei argumentar: “Mas dona Márcia, essa esfiha tem... proteína! É praticamente um shake fitness!” Ela riu, balançou a cabeça e foi embora com uma garrafinha de água com limão. Água com limão! Quem substitui uma esfiha por isso?
O dia seguiu assim. O Seu Carlos, do açougue, disse que estava “cortando glúten”. O glúten! O homem que vive com um pão francês na mão agora é militante do pão sem farinha. A menina da loja de roupas, toda fitness, olhou minha bandeja como se eu estivesse oferecendo um prato de veneno frito. “Tô de jejum intermitente, Zé. Só como entre meio-dia e duas.” Olhei pro relógio: 11h58. “Faltam dois minutos, moça, leva uma coxinha pra aquecer!” Ela fechou a cara e voltou pro Instagram, postando stories de suco verde.
As horas passavam, e os salgados, que de quentinhos já tinham virado morninhos, começavam a exalar aquele cheiro de “é agora ou nunca”. Eu já estava desesperado. Comecei a improvisar: “Coxinha vegana!” (mentira, era de frango), “Pastel keto!” (tinha mais massa que recheio), “Esfiha sem culpa!” (essa eu nem sei o que quis dizer). Nada funcionava. As pessoas passavam, olhavam, cheiravam e recusavam, como se meus salgados fossem uma ameaça à humanidade.
Foi quando, no fim da tarde, com o sol castigando e minha esperança no fundo do poço, apareceu o Seu Orlando, o mendigo filósofo do bairro. Ele é famoso por discursar sobre a vida enquanto divide um pão velho com os pombos. “Zé, tá com cara de quem perdeu a guerra pros fit,” ele disse, rindo. Eu suspirei, abri a caixa térmica e mostrei os salgados, que a essa altura estavam com um leve perfume de “talvez amanhã não estejam bons”. “Seu Orlando, ninguém quer. Tô pensando em jogar tudo pros pombos.”
Ele coçou a barba, olhou pros salgados como se fossem uma obra de arte contemporânea e teve uma ideia: “Zé, deixa comigo.” Antes que eu pudesse perguntar o que ele ia fazer, ele pegou a bandeja, subiu num banquinho e começou a gritar: “Pessoal, salgados mágicos! Coma um e emagreça dois quilos! Testado pela NASA, aprovado pela Anvisa!”
Eu juro que achei que era o fim. Quem ia acreditar nisso? Mas, pasmem, a multidão começou a se aproximar. A menina fitness voltou, desconfiada, mas pegou uma coxinha. O Seu Carlos, o sem-glúten, comprou dois pastéis. Até a dona Márcia, a rainha do low carb, apareceu com uma nota de dez reais e levou três esfihas, dizendo que era “só pra experimentar”. Em dez minutos, a bandeja estava vazia, e meu bolso, cheio. Seu Orlando, com um sorriso de quem enganou o destino, pegou uma coxinha de brinde e piscou: “Zé, o segredo não é o salgado. É a história que você conta.”
Voltei pra casa com a caixa térmica leve e o coração mais leve ainda. Os salgados quase azedos salvaram o dia, e eu aprendi a lição: no comércio ambulante, não é só fritura que vende. É a lábia, a criatividade e, quem diria, um mendigo filósofo com um plano maluco. Amanhã, tia Jurema vai fritar mais. E eu já tô pensando em gritar: “Salgado detox, freguesia! Leva um, emagrece dois!”